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O Que a Bilheteria de 2025 Diz Sobre o Brasil

Então, ainda não é Natal. Entre entretenimento e hipervigilância, gostando ou não, chegou a hora da retrospectiva da bilheteria. A preferência do público brasileiro ainda se inclina fortemente para grandes produções estadunidenses, especialmente sequências de franquias conhecidas como Lilo & Stitch, Como Treinar o Seu Dragão, Rei Leão, Capitão América, Superman, Quarteto Fantástico e Jurassic World. Mas o cinema brasileiro também marcou presença: levou 8,3 milhões de espectadores, com crescimento de 11,2% na participação de mercado e aumento de 197% nas vendas de ingressos em comparação com o período anterior.


Conforto na mesmice: Como o cinema acalma em tempos caóticos

Para nós, brasileiros, a saudade no cinema é uma faca de dois gumes. Em uma sociedade marcada por desigualdade, crises e mudanças tecnológicas rápidas, esse tipo de conteúdo conforta o público em um verdadeiro “vertical de oportunidades”: rolagem infinita em plataformas online e múltiplos serviços de streaming caros. As pessoas buscam títulos familiares porque eles prometem previsibilidade em um mundo cada vez mais caótico, oferecendo conforto e uma memória cultural compartilhada. Elas também tendem a gastar dinheiro onde reconhecem e confiam na marca, especialmente se têm lembranças positivas associadas a ela.


Para os estúdios, no entanto, a saudade é conteúdo de baixo risco, explorado de maneira obsessiva. Franquias, remakes, reboots, prequels e spin-offs são apenas a ponta do iceberg. Por trás disso, há uma expansão multicanal: marketing eficiente, merchandising, adaptações de propriedades intelectuais e releituras contemporâneas de universos narrativos familiares. No fundo, estúdios e plataformas de streaming travam um conflito diário, cada um disputando a galinha dos ovos de ouro: a atenção do público.


Saudade do que não vivemos

Talvez essa saudade não seja compartilhada por todos. Muitos jovens têm recorrido às gerações mais velhas em busca de estilos de vida ou atividades analógicas, transformando-os em hobbies. São práticas que sempre existiram como uma forma de escapar do universo digital — um tipo de detox que, ao mesmo tempo, estabelece tendências por meio desses ressurgimentos culturais. É uma rebelião sutil contra o visual hiperpolido e aprovado por algoritmos que domina as redes sociais. Em um mundo onde todos são incentivados a se parecer através de filtros e pressões estéticas crescentes, abraçar a cultura analógica se torna uma forma de afirmar a própria individualidade.


Essa saudade também é um recorte do imaginário coletivo, uma faceta do passado compartilhada independentemente das barreiras geográficas. Ainda assim, não deixa de ser uma anemoia: afinal, apenas 10% dos brasileiros têm passaporte, viajar para o exterior ainda é um privilégio de poucos, muitas vezes devido a questões financeiras e logísticas.


Cinema estrangeiro morreu de saudade, o nacional renasceu


Na gringa, alguns críticos definem essa saudade como uma reciclagem de conteúdo, chegando a considerá-la a morte do cinema original. O espírito criativo ainda persiste, mas tornou-se vítima do “Pac-Man corporativo” dos estúdios e do capitalismo selvagem. O foco em STEM e inteligência artificial adiciona ainda mais pressão ao setor. No entanto, o cinema nacional presencia a sua época de ouro, talvez graças à combinação de incentivos, destaque em premiações internacionais e avanços tecnológicos.


Cinema brasileiro cresceu ou apenas sobreviveu sob aparelhos?

A bilheteria nacional de 2025 incluiu filmes como Auto da Compadecida 2, Ainda Estou Aqui, Chico Bento e a Goiabeira Maravilhosa, Vitória, Homem com H, Perrengue Fashion, Fé Para o Impossível, O Último Azul e CIC – Central de Inteligência Cearense.


O governo Bolsonaro ficou marcado por um período conturbado, incluindo mais uma extinção do Ministério da Cultura. Após o fim de seu governo, testemunhamos uma ascensão cultural do país, com crescente destaque internacional do cinema brasileiro em festivais como Cannes, Berlim e Los Angeles. Mas a pergunta persiste: essa visibilidade global é fruto de validação estrangeira de um produto nacional, uma tendência passageira ao estilo “modo leite”, ou representa uma resposta genuína à chamada “idade das trevas”?


Ainda existe preconceito e desrespeito em relação aos 229 anos de história audiovisual do Brasil. Curiosamente, grande parte do público descobre a própria cultura por recortes nas redes sociais. Nossas histórias sempre estiveram presentes, embora muitas vezes em momentos de qualidade técnica questionável, perdidas em incêndios, descuidados de governos subsequentes e outros danos ao patrimônio histórico.


O que a bilheteria nos revela sobre o Brasil?

Foram três os temas dominantes: drama, comédia e saudade. A comédia aparece em menor quantidade, mas continua sendo o nosso carro-chefe, resultado de anos de tradição cinematográfica. Apesar de alvo de muito desprezo, ela é uma forma de compreender o povo: nosso modo otimista, a criatividade e a capacidade de transformar limão em caipirinha. É a nossa válvula de escape diante das durezas da vida, uma expressão de resistência que se reinventa de diferentes maneiras.

Neste ano, porém, também houve espaço para uma mistura de drama com saudade. O passado é amargo e salgado, repleto de absurdos gloriosos. Ao contrário de outros países, onde o passado costuma ser retratado em tons idílicos ou (agri)doces, no audiovisual brasileiro ele foi muitas vezes esquecido, lembrado apenas em propagandas políticas como estratégia de manipulação. Somos um povo de memória curta, mas hoje buscamos compreender a cara do nosso país, tão diverso e cheio de camadas. É um legado do Cinema Novo dos anos 60, o país e os marginalizados vistos sob um olhar crítico e aguçado. Fenômenos intergeracionais sensíveis, como os live-actions de Maurício de Sousa, nos conectam acima das barreiras que historicamente nos dividem., mas com a nossa infância coletiva como nação.


O cinema brasileiro é um cinema de todos?

Esse preconceito tem dois pais divorciados. De um lado, a dublagem brasileira, historicamente prestigiada e responsável por tornar o audiovisual acessível ao grande público — afinal, 95% da população fala apenas português, e a dublagem é a escolha natural para muitos. Do outro lado, a legenda, símbolo de uma bolha resistente e de certa aporofobia que domina a classe média. A educação bilíngue, no Brasil, permanece um privilégio de classe.


O provérbio italiano “Traduttore, traditore” — “tradutor, traidor” — lembra que todo tradutor precisa fazer concessões ao transportar uma obra de uma língua para outra, inevitavelmente alterando nuances, contexto e intenções. Em alguns países, isso se reflete em títulos estrangeiros adaptados de forma exagerada ou caricata, justamente para fortalecer a identidade cinematográfica local.


No Brasil, porém, o cenário se inverte: o tradutor pode ser o camarada, até (lucra)criativo, adaptando títulos e diálogos não para afirmar identidade nacional, mas para tornar o produto mais vendável, mais palatável ou simplesmente mais chamativo ao público local. Assim, desenvolve-se a saudade do que não vivemos — um medo de ficar de fora. Fomos ensinados a valorizar o exterior, e essa mentalidade se propaga a cada geração.


O cinema brasileiro é realmente para todos?

Para além desses pré-conceitos e tipos de saudade, há uma questão cultural mais profunda.


O jovem brasileiro que se descobre cinéfilo convive com a realidade de que, na raiz, somos um povo noveleiro. Talvez por hábito geracional, talvez pelos preços altos do streaming ou pelo acesso limitado à cultura e seus infinitos combos. Muitos filmes nacionais ainda tropeçam narrativamente ao tentar competir com essa estrutura enraizada. Embora o acesso à cultura seja um direito humano, a realidade brasileira revela que ele é, na prática, um privilégio para poucos, limitado pela desigualdade de renda, pela falta de infraestrutura e por barreiras históricas e geográficas. Ao contrário da Índia, onde o cinema comercial é pensado para estar junto, nos pilares da população e dos gostos demográficos, o famoso Masala, aqui é preciso cuidado com o “tempero”, pois podem ser sutis formas de controle.


O Brasil frequentemente aparece entre os cinco primeiros países no ranking global de acessos a sites de pirataria. A pirataria, por mais condenada que seja, evidencia que grande parte da população ainda encontra o audiovisual inacessível, resultado direto dessas barreiras econômicas e territoriais.


E, afinal, época de ouro para quem? Walter Salles, por exemplo, integra uma das famílias mais ricas do país, herdeiras do Banco Itaú Unibanco. Fora do eixo Rio–São Paulo, a realidade é outra: precariedade para os trabalhadores do audiovisual, falta de infraestrutura, oportunidades limitadas, jornadas exaustivas e informalidade, com poucas políticas de cotas ou editais que ofereçam algum alívio.


Gosto salgado de saudade

Outro fenômeno que acompanhei vem da cidade onde nasci e cresci: Niterói, pano de fundo que se tornou quase personagem na famosa, querida e lucrativa franquia de Paulo Gustavo. Ao longo desses 25 anos de indústria vital, me despedi de inúmeros espaços culturais gentrificados; memórias antes vivas foram sendo cimentadas.


Lembro da videolocadora na rua de cima, essencial nos meus finais de semana, férias ou feriados não viajados. Depois, vieram a extinção dos cinemas de rua e o efeito dominó do fechamento das salas em shoppings. Já adulta, descobri que, no quintal de casa, literalmente existia um cinema frequentado pela juventude das minhas avós. Hoje, restam apenas quatro salas no coração da cidade, além da promessa eterna de reabrir o antigo cinema de rua — promessa que já virou piada local.


Esses espaços eram muito mais do que cultura: eram comunidade. Primeiros encontros, rolês com amigos, memórias construídas em família. Estudantes tentando compreender o mundo ao redor, usufruindo do desconto na entrada. Trabalhadores buscando escapismo. A ausência desses locais é sentida no cotidiano, até mesmo no aumento da criminalidade, que nasce, em parte, de um vazio cultural.


No fim de novembro, foi inaugurado o Centro Cultural Cauby Peixoto, no Fonseca. Um respiro tímido, mas necessário.


É hora de deixar a saudade para trás?

Apesar de toda essa negligência, temos as ferramentas para “democratizar” o conteúdo — a um toque de distância de construir nossas próprias plataformas e testar nossa sorte contra os algoritmos que nos dividem online. E vale lembrar: mais de 11% dos brasileiros ainda não têm acesso a um smartphone pessoal, enquanto menos de 0,5% vive sem eletricidade. A cultura sempre encontra uma forma de crescer e resistir ao elitismo.


Chega de saudade. A realidade é que, se 2025 foi o ano da nostalgia no cinema, talvez 2026 seja o ano em que finalmente teremos coragem de perguntar: quais histórias ainda não foram contadas? Brasil, mostra a sua cara!

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